sexta-feira, 5 de março de 2010

A evolução do flanelinha - Ivan Angelo

A evolução do flanelinha
Ivan Angelo


Estacionei o carro numa rua tranquila de bairro, com boa sombra, e andei duas quadras para arriscar um palpite na Mega-Sena. Voltei milionário, imaginando como distribuiria o dinheiro e faria as aplicações da bolada.
Entrei no carro, dei a partida, e estava ajeitando o cinto de segurança quando se materializou da janela um homem talvez jovem, sujo da rua, magrelo, se alguns dentes, à espera. Mais um coitado do que uma ameaça. Havia espaço para eu air fora, mas a cirscunstância de estar momentaneamente milionário me levou a procurar um dinheirinho para o rapaz.Cata nas gavetas do carro, cata nos bolsos, e a busca só produziu uma moeda de 25 centavos, que estendi para o rapaz co a cara de sinto muito é só o que há. A cara dele não foi só de decepção, foi também de vítima do sistema, que se traduziu em reclamação:
- Tá difícil ser flanelinha neste país.
Ora veja. Como se eu estivesse explorando um pobre trabalhador, pagando uma miséria pelo serviço prestado. Aí a indignação foi minha:
- Se não quer, devolve. Que flanelinha o quê, rapaz... Nem estava aqui quando eu cheguei. Me fez algum favor? Algum serviço?
Diante da oalavra serviço ele me olhou como se tivesse ouvido uma coisa sem propósito. E foi-se afastando, braços resmungões.
- Tem de encarar a realidade, rapaz. Você é pedinte, não é flanelinha.
Não falei alto, espero que não me tenha ouvido. Consciência de seu papel era o de que ele menos precisava naquela situação.
Fico pensando nos flanelinhas. Eles não chegaram de repente como gafanhotos, não foi uma onda. Vieram vindo. Há uns 45 anos atrás, ou mais, a classe média começou a comprar automóvel. Lavava o carro na porta de casa. Não havia lava-rápido. Sábado e domingo de manhã eram dias de lavar o carro no portão. Alguns davam o brilho com cera e se afastavam uns passos para admirar a beleza. Quem podia lavava no posto. Os ricos tinham motoristas que faziam isso por eles.
Começaram a aparecer uns rapazes esforçados, com baldes e panos, nas ruas, praças e outros locais onde os carros estacionavam.
- Quer lavar doutor? No capricho.
Por uns trocados, lavavam o carro. Você estacionava, ia fazer suas coisas e quando voltava seu carro estava "jóia", "joinha".
Com o tempo, o preço começou a subir, o serviço passou a ser fracionado:podia-se lavar só os pneus, com escova e sabão, e óleo queimado depois, para ficarem brilhando; podia-se lavar só os vidros e os cromados; ou fazer uma "completa". Os lavadores de carro forma aumentando, já identificados mais pea flanela na mão elos baldes e panos, e rivalizavam e brigavam entre si. Para atrar os motoristas, que cresciam rapidamente de número, eles disputavam vagas agitando a flaneliha, ajudavam nas manobras, Passadomais algum tempo, e multiplicado o número de carros, a briga passou a ser pela vaga, não pelo serviço. Vai perguntar hoje se algum flanelinha quer lavar o seu carro... Nem flanela eles usam mais. Organizaram-se em gangues. Com a multiplicação de furtos de carros e nos carros, a função deles mudou, oferecem-se como guardadores. 
- Que que olhe, doutor?
Ai de você se não quiser. Antes, a paga podia ser qualquer trocado, gora tem preço fixo alto, dependendo do lugar e do evento. Nem por isso seu carro está guardado. ALguns fazem que não veem os ladrões, outros se associaram a eles.
A praga dos guardadores de carros espalhou-se pelo país. Um dia, numa pequena cidade histórica de Minas, estacionei o carro no largo da Igreja de Nossa Senhora da COnceição. Logo veio um menininho, miudeza de seus 8 anos:
- Pode olhar, moço?
Brinquei:
- Nossa Senhora já está olhando.

E ele, mineirinho:
- Eu ajudo ela.


crônica de Ivan Angelo,
publicada na revista Veja São Paulo em 30 de Setembro de 2009 (nº39)

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